O Sapateiro de Bruxelas \u00e9 apaixonado pela literatura. H\u00e1 uma lista imensa de autores e obras a que devota leg\u00edtima venera\u00e7\u00e3o, entre as quais \u201cA Metamorfose\u201d, a mais c\u00e9lebre novela de Franz Kafka e uma das mais importantes de toda a hist\u00f3ria da arte liter\u00e1ria.<\/p>\n
Segundo o artes\u00e3o, o livro escrito em novembro de 1912, conclu\u00eddo em apenas vinte dias, e publicado em 1915, mostra um indiv\u00edduo exclu\u00eddo da ordem das rela\u00e7\u00f5es humanas, subtra\u00eddo das qualidades inerentes \u00e0 sua personalidade; algu\u00e9m completamente sem autonomia e autodetermina\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Na obra, Kafka descreve o caixeiro viajante de nome Gregor Samsa como um sujeito que, aos poucos, abandona suas vontades e desejos para sustentar a fam\u00edlia e pagar as d\u00edvidas dos pais; um \u201cescravo do sistema patriarcal\u201d, muito em voga \u00e0 \u00e9poca.<\/p>\n
Vivendo desta forma, certa manh\u00e3, Gregor acorda metamorfoseado. Da noite para o dia, ele vira um inseto monstruoso, no caso uma horrenda e asquerosa barata.<\/p>\n
A par da forma desumana apresentada na breve novela, o Sapateiro observa, entre outras ila\u00e7\u00f5es fant\u00e1sticas propiciadas pelo genial autor, o reflexo da intoler\u00e2ncia \u00e0 quebra de padr\u00f5es previamente estabelecidos.<\/p>\n
Lembra que a palavra metamorfose vem do grego\u00a0met\u00e1bole,<\/em>\u00a0e significa mudan\u00e7as, referente \u00e0s transforma\u00e7\u00f5es que ocorrem na estrutura, na forma do corpo e at\u00e9 mesmo na forma de vida de alguns organismos durante seu desenvolvimento.<\/p>\n No entender do bruxelense, tais altera\u00e7\u00f5es incluem, sem d\u00favida, o modo de pensar e agir de algumas pessoas ou determinados grupos humanos.<\/p>\n Afinal, ningu\u00e9m quer ser barata, reflete distra\u00eddo o belga – para em seguida ser interrompido em suas digress\u00f5es por uma mariposa inquieta, que bate na luz da TV ligada.<\/p>\n Prontamente, seu racioc\u00ednio vai de um inseto ao outro e o cal\u00e7adista, estudioso da etimologia, lembra-se que a palavra “mariposa” \u00e9 de origem\u00a0castelhana, fruto de uma composi\u00e7\u00e3o de “Maria” (Mari<\/em>) e do\u00a0imperativo\u00a0do verbo\u00a0posar\u00a0<\/em>(em portugu\u00eas\u00a0pousar<\/em>), “posa<\/em>“.<\/p>\n Diferente das baratas, o Sapateiro n\u00e3o tem ojeriza \u00e0s mariposas, at\u00e9 as admira, embora, tenha dificuldade em entender o curioso comportamento de voar em c\u00edrculos em torno das luzes – o que tecnicamente \u00e9 chamado de fototaxia, segundo o minucioso artes\u00e3o-, principalmente das luzes artificiais, como a sua TV.<\/p>\n Observando o inseto voar para longe, talvez \u00a0\u00e0 procura do lumiar de algum celular ou tablet, o s\u00e1bio retorna ao seu laptop e, com os olhos brilhando, dedilha em seu computador uma frase digna de Kafka – ou, ao menos, ele julga s\u00ea-la:<\/p>\n – A luz hipn\u00f3tica das telas de TV, celulares e dos computadores nos transforma na atualidade em grandes insetos, imensas mariposas que aos bandos est\u00e3o povoando todo o planeta Terra. Nossas vidas passaram a girar em torno de telas luminosas. Enfim, hoje, #somostodosmariposas.<\/p>\n Empolgado, o Sapateiro vai al\u00e9m:<\/p>\n – Parece que vemos melhor as coisas, pessoas e paisagens nas telas planas do que ao vivo. Vide a transmiss\u00e3o de eventos esportivos e document\u00e1rios tur\u00edsticos das diversas redes de comunica\u00e7\u00e3o massiva. Por\u00e9m, ao mesmo tempo em que estamos conectados com o mundo por esses brilhos azulados n\u00e3o temos tempo de falar com quem nos cerca: colegas, amigos e familiares. Viramos uma mistura de baratas-mariposas \u2013 trancafiados em casa atra\u00eddos pelas luzes das informa\u00e7\u00f5es fastfood, por\u00e9m desconectados das pessoas e dos sentimentos que, realmente, valem a pena ser humanamente vividos.<\/p>\n A forma como nos comportamos perante estes objetos de manipula\u00e7\u00e3o mental coletiva, reflete o Sapateiro, que agora observa a mariposa pousada novamente na TV – ao que parece assistindo ao BBB – faz com o corpo o mesmo que faz com o esp\u00edrito.<\/p>\n Passamos a ter pregui\u00e7a de pensar, sentir, tocar, trocar experi\u00eancias e ouvir os outros.<\/p>\n Renunciamos ao conv\u00edvio fraternal e familiar; com parentes, amigos ou vizinhos; aos bons livros e as m\u00fasicas maravilhosas; n\u00e3o frequentamos mais lugares p\u00fablicos; n\u00e3o suportamos mais a presen\u00e7a f\u00edsica das pessoas. Tudo isso profundamente agravado pela nefasta pandemia do coronav\u00edrus.<\/p>\n Infelizmente, afirma o Bruxelense, parece que preferimos nos comunicar por meios digitais e eletr\u00f4nicos.<\/p>\n Hoje, incrivelmente, at\u00e9 a morte obedece a este ritual infame. Os doentes terminais s\u00e3o afastados do seu ambiente e simplesmente \u201cdesligados\u201d, privados do \u00faltimo abra\u00e7o, do \u00faltimo adeus.<\/p>\n As pessoas est\u00e3o proibidas de morrer em seus pr\u00f3prios lares e camas, rodeadas de afeto, acompanhadas de vozes, rostos e objetos familiares que desde sempre fizeram parte das suas vidas. Resta-lhes apenas a sutil claridade, os cheiros enjoativos, o som compassado e inclemente dos monitores que anunciam o fim pr\u00f3ximo.<\/p>\n Enquanto isso, nesse mesmo tempo, os vivos seguem procurando a luz – que n\u00e3o vem de dentro, mas das telas. Mariposas com perfil de baratas ou baratas com perfil de mariposas, v\u00e3o adiante, em circulares voos rasantes, sem necessariamente saber para aonde e nem por qu\u00ea.<\/p>\n Conclui o art\u00edfice que tudo isso se deve porque muitos de n\u00f3s, insetos mentais, n\u00e3o temos mais tempo e nem interesse por nada que n\u00e3o seja o brilho sup\u00e9rfluo das telas, telinhas e tel\u00f5es.<\/p>\n O Sapateiro de Bruxelas finalmente compreende que passados milh\u00f5es de anos de evolu\u00e7\u00e3o da orgulhosa esp\u00e9cie humana, nossa vida se resume a pensar em c\u00edrculos em torno de fugazes luzes artificiais.<\/p>\n Naquela noite, o Sapateiro n\u00e3o dormiu. Andou pela casa como um zumbi em meio aos seus objetos eletr\u00f4nicos. Era melhor n\u00e3o facilitar. Teve medo de acordar metamorfoseado para sempre.<\/p>\n M\u00e9dico e membro da Academia Erechinense de Letras<\/p>\n<\/div>\n<\/article>\n <\/p>\n